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A pior poeira a ser varrida é aquela deixada pelo que não aconteceu

Havia algo de profundamente mágico no entardecer. Poderia ser algo relacionado à serenidade de mais um dia que chegava ao fim, ou, quem sabe, a esperança que ressurgia para o amanhã, ou, se quisermos obscurecer um pouco mais nossas percepções, poderíamos pensar que é a calma proveniente da desilusão de mais um dia que deixamos escorrer como as gotas perdidas de um encanamento obsoleto.

O fato é que nessas pequenas gotas, escorrem os embriões das infinitas possibilidades que deixaram de ser avistadas, porque estávamos muito preocupados com as trivialidades que tendem a ocupar nossas mentes; inseguranças, ansiedades, medos.  É certo que a guerra para superar essas “trivialidades” que permeiam nossas mentes é desafiadora e que são inúmeras as batalhas que perdemos, porém é justamente por esse motivo que as defino como “trivialidades”, para que possamos perceber que são pequenas diante da imensidão da vida.

Em algum momento, do qual já não recordo, encontrei em um poema uma reflexão que batia em minha porta na hora das maiores decisões. Ela nutria a consciência de que o verdadeiro e único cadáver de nossas existências é o cadáver da coisas que deixamos de fazer, dos momentos que perdemos por medo, por falta de atitude, das ondas que passam e não mergulhamos, sem perceber que elas não voltam. O que deixamos de fazer não volta, porque é apagado de nossa história no momento em que optamos por hesitar.

O pior tipo de poeira é aquela deixada pelas coisas que não fizemos, pelas histórias que deixamos de viver, por permitirmos que nossas medos superem nossa vontade de vida.

Escrevo essas palavras no final de março de 2020, o mundo inteiro foi assolado por um vírus que em pouco tempo tornou as ruas das cidades mais movimentadas em lugares vazios. A rua que eu estava não era de uma das cidades mais movimentadas, mas não era uma cidade silenciosa. Em outro momento, passando pela mesma rua, na qual estava agora aguardando os minutos passarem, esbarrei em uma relíquia, uma pequena moto que muito havia marcado a vida dos amantes das duas rodas seis décadas atrás. No banco do piloto, mas não pilotando; um pequeno felino, muito amigável, diga-se de passagem. A situação era um convite para que eu parasse, e assim o fiz. Logo o dono das duas belezinhas surge e relata a história da moto e da sua vida. Sua esposa havia desenvolvido Alzheimer e ele encontrava companhia na pequena moto e no fusquinha estacionado logo ao lado.

Enquanto esperava e lembrava da situação, observava sua esposa varrendo com muita convicção o asfalto da frente de sua casa, o que proporcionou várias direções para os meus pensamentos, mas a primeira delas foi certamente a para a ideia poeira daquilo que não fazemos. Ela estava varrendo, mas era tarde demais, porque já não podia saber o que varria, nem o motivo pelo qual fazia, mas ainda assim, depositava muita energia na tarefa. Nós sabíamos, mas será que tínhamos consciência a respeito dos lugares nos quais depositávamos nossas energias?

Nosso tempo e nossa saúde é o que temos de melhor e os desperdiçamos buscando quinquilharias, gastando nossa paz ao brigar com os infortúnios da vida, sem conceber que o hoje é tudo, e que se buscássemos tornar a cada dia uma pequena vida, acumularíamos menos poeira ao longo da jornada.

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