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Lockdown

Carta à Srª Bittencourt

(Meu Lockdown)

         O momento é de abandonarmos o compromisso de amanhã às 9h. Certamente estaria pontualmente, como sempre estive. Você sabe que no verão passado estava tão ocupado com os afazeres na capital daquele país, que quando você ligou, fez-me ter aquele minutinho de paz e tranquilidade que sua companhia sempre me propiciou. Sabes que dali ia direto para aquele empreendimento em Punta Cana, em República Dominicana, no qual você esteve envolvida.

         A verdade é que você se tornou um raio de sol num céu azul em um dia depois de muitos dias de tempo cinzento. Foram anos de trabalho que nos fizeram ser quem somos. Os meus sentimentos são de eterna gratidão a você, sempre disposta a ajudar em todas as minhas esquisitices, com certeza, estranhas maneiras de se fazer dinheiro, porém em minha defesa, fui sempre sagaz, perspicaz e certeiro. Características que considero como as mais evidentes de minha personalidade e como você deve ter de reconhecer.

         Durante todos esses meses, meus sentimentos ficaram como que petrificados em caixas. O que me angustia é que talvez não tenha feito o certo. A maneira como todos nós sempre fomos aprendendo a fazer o certo, como algo naturalmente jogado por aquele entorno de parceiros e amigos. O tempo foi passando, e na impossibilidade de ter êxito, em fazer o certo, a pandemia se alastrou no mundo e dentro de mim. Ela corrói e apenas quero fazer o certo, mas você sabe… Minha vida se tornou um carrossel de parque, de uma rotina ininterrupta, que se esmorece na minha incapacidade de pensar e quanto mais gira, mais permaneço sendo uma função tal qual o cavalo do carrossel que gira sem parar.

         Na metade destes três meses de pandemia, os negócios iam desaguando num mar revolto de problemas que me perturbavam. Perdi metade de tudo que tinha. Foram anos de dedicação para ser bem sucedido, sendo um exemplo para todos nós. Por isso em momentos pensei que perdia metade de mim. Para ser honesto, em um lapso de momento, pareceu-me não saber mais matemática: “1.000 + … não sei” e depois displicentemente me vieram pensamentos como: “e se não soubesse contar estaria melhor?”

        Com metade da minha vida perdida ocupei-a com preocupações sobre a outra metade que ainda tenho. Estranhamente me sentia fisicamente fatigado e com um imenso desgaste mental. No começo eram horas no celular fazendo ligações, e enviando mensagem para parceiros de negócios. Amigos eram poucos, porém tinha muitos negócios a concretizar, e fazer o certo era e sempre foi meu dever.

         Alguns dias depois de outro empreendimento meu falir, já estava em casa sobre a cama no tempo ocioso de que não queria levantar, e foi então, que levantei por uma ordem mental. Decidi ir até ao banheiro, e quando naquela manhã o relógio marcava 7 e 30, pensei que devesse estar trabalhando. No entanto, fui me ver no espelho e olhando minha imagem percebi que um lado de meu rosto era diferente do outro. No alto de meus 43 anos jamais havia notado, e logo lembrei de já ter lido algo sobre num texto qualquer.

         Hoje o dia estava terrível! Queria fazer o que deveria ser feito, mas não podia sair de casa. Não havia nem necessidade para isto. Estou preso na imagem do espelho do banheiro e não posso sair de lá! Então sai de frente do espelho e fui para sala assistir televisão. Todos sabem que odeio televisão, mas estava passando um programa de culinária em que mostrava uma receita de um prato que gosto muito. Parei um tempo para assistir a uma receita de paella.

         Paella, ela que fala espanhol! Seguindo as instruções do homem do canal, peguei uns camarões congelados para descongelá-los. Muito arroz, condimentos, mexilhão (que coisa estranha é um mexilhão!)

         Quando, então, estava quase tudo pronto em cima da mesa lembrei que tinha um polvo deixado por minha avó na semana passada, sexta, pra ser exato. E a paella de frutos do mar é a que mais gosto. Peguei aquele animal grande e cabeçudo, encarei-o e pensei: “mas que cabeça enorme!” De fato, a cabeça dele era quase do tamanho da minha e eu tinha um corpo bem maior que o dele. Estranhamente me bateu um sentimento de competição com aquela espécie de animal morto. Ah! O animal tinha varias pernas e era esperto, mas eu estava no controle. Estava mesmo? Nem o conheci enquanto era vivo. Logo depois de contar seus oito braços, o lindo polvo de cinco cores me olhou como se pedisse piedade e não cortasse seu corpo. No entanto, ele estava morto, então mirei bem no seu peito (na verdade eu imaginei que fosse um peito). O animal era virado em cabeça e braços.

         Haviam quatro bocas no fogão. Depois de cortar a cabeça dos camarões limpava-os, e retirava a casca de suas peles; uma por uma. Camarões sem cabeças, sem cascas de pele e limpos. Uma panela de refogados de pimentão, tomate e cebola e outra com o polvo. Outra boca ainda estava reservada para momento do arroz. Sentia-me um verdadeiro regente de orquestra ou chefe.

         Em um momento observando os mexilhões que já tinham destino certo pensei: “parecem baratas grandes, mortas e rasgadas”, e ri disso. Realmente me abriu o apetite e já eram quase 15 e 30, e ainda não almoçara. Fui para o sofá que ficava há alguns passos dali. Deitado, olhando para o teto, o ventilador girava e girava, devagar, mas girava e pensei: “não parece tão horrível”. Há pouco tinha dito que o dia estava horrível, entretanto com o desenrolar das minhas relações com o espelho, a televisão e a culinária  tinha-me surtido um bom efeito. O dever de estar amanhã aí às 9h com a minha pontualidade britânica já não era o ponto de minha dor latente que pouco se manifestava.

          Algo como um pensamento bobo me veio e dizia que as relações com animais mortos são transmigrações de almas que por ai reverberam em outras almas. Talvez por isso me sentisse menos mecânico como um relógio que nasceu para o trabalho e mais como um polvo lindo de oito braços que está louco para um petisco no mar de possibilidades que ele tem. O oceano é seu e é maior do que o meu mundo. As suas cores são majestosas e não são uma, mas cinco cores do azul ao laranja que com a luz do sol o faz brilhar em camadas de misturas de cores.

         A semi-transcendência de meu corpo repousado sobre o sofá com a cabeça posta sobre o encosto, me deu uma esperança estranha. Uma esperança estranha às vezes se confunde com o medo. Quando ali parado olhando para o ventilador, virei a cabeça para à esquerda, então observei um relógio, muito antigo, dado de presente por minha avó, a mesma avó que me deixou o polvo na sexta passada. Sei que aquele relógio nunca tinha falhado e que era à acorda, o que me fez pensar como ainda ele não parara sendo que nunca dera corda nele. Lembro que minha avó tinha recebido ele de presente de seu amante, o meu avô.

        Por um momento fique observando o ventilador sobre minha cabeça e olhando bem para o relógio de ponteiros e  números de algarismos, então pensei que em certa medida eu era aquele relógio. E foi então que me veio à luz de que a esperança estranha era a imagem do polvo de cinco cores num infinito oceano.

      Querida, a paella está quase pronta e tenho que retornar para minha imagem presa dentro do espelho. Amanhã às 9h? Não. Nunca mais.

 

Com terno amor; Pedro Velázquez.  05/2020 –  Brasil

 

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